Já que revirei o baú de lembranças para contar a um amigo minhas
aventuras adolescentes, aqui vai mais uma para outro “curioso” de plantão.
Essa é uma história que não existe,cujos personagens juram
de pé junto que ela nunca aconteceu,mas estávamos todos lá e eu também. Uma
história de quando dois universos,paralelos e determinantes na minha vida,se
encontraram por acaso.
1970, ano de copa do mundo,tempos esquisitos onde coisas
estranhas atravessavam minha infância.
Já naquela época,futebol na minha casa era,para mim e meu pai,assunto
sagrado,encontro imperdível,momento sempre especial e diferentemente de
hoje,naquele tempo,Seleção Brasileira
era personificação divina.
Eu e os amiguinhos do prédio onde morava,no Largo dos
Leões,ficávamos horas picando papel,fazendo serpentinas de papel higiênico furtados
da dispensa ,para na hora da entrada em campo ou do grito de gol,inundarmos as
ruas e,claro,a sala de casa. Tínhamos todo um esquema montado onde cada jogo
era visto na casa de um do “bando de tãtãs” e no dia seguinte,a sala da vez era
a minha.
Como eu disse,eram tempos estranhos. Vez por outra,no meio
da madrugada,minha mãe me acordava e me levando para sua cama,avisava que um tio
ou tia havia chegado de viagem e precisava de um lugar para dormir por que
logo partiria. Eu,com quatro,cinco anos,olhava tudo aquilo e não entendia
direito o que acontecia. Na família dos meus amigos,quando parentes vinham
visitar,havia festa,almoço prolongado,passeios à lugares diferentes,mas lá em
casa, era um desassossego. Minha mãe,andava para lá e para cá esfregando as
mãos e sorrindo de um jeito que assustava;meu pai fumava tanto que todo o
apartamento,minúsculo como era,se enchia com uma fumaceira que ardia os olhos e
não saia da janela que sempre ficava meio cerrada. Ninguém podia ir lá em
casa,eu não podia contar à ninguém que trancado na parte da sala com portas de
correr,que me servia de quarto,tinha um parente que eu quase nunca via o rosto
e que de repente sumiria.
Depois de verificar na cozinha se tudo estava pronto para o
dia seguinte,sucos,biscoito e pipoca,fui feliz da vida dormir. Na madrugada eu
acordei com minha mãe me chamando. Eu queria morrer,não naquele dia,era a minha
vez de dar a festa,de trazer meus amigos,eu tinha sonhado com aquilo a semana
inteira...não era justo. Tentei argumentar,perguntei porque essa droga de tio
não podia ficar na casa de outra pessoa só até o jogo acabar... não houve jeito
e fui para a cama dos meus pais marchando de raiva,com os olhos fechados porque
esse era o “trato”.
Na manhã seguinte levantei com uma tristeza enorme,me lembro
que chorava e pedia ao meu pai para deixar que meus amigos viessem,...nada
feito. Com a cara inchada e vermelha,peguei os “comes e bebes” e levei até a
casa da Dorinha,próxima na fila à “receber
a Seleção”. Disse que minha mãe estava doente e que eu teria que ficar
em casa para cuidar dela e da minha irmã pequena,por isso o jogo não poderia
ser lá.
Na hora do jogo,com
muita raiva,me sentei sozinha na frente da TV. Meu pai se sentou ao meu lado,me
passou os braços nos ombros,me deu um beijo na cabeça e se desculpou.
Aos poucos,o jogo foi caminhando e a raiva desaparecendo. Minha
mãe trancada no quarto com minha irmã,meu pai ia e vinha no caminho da janela e
eu com um olho no jogo e outro naquela porta fechada do meu “cantinho”.Nunca
tinha tido curiosidade de olhar quem estava ali,mas naquele dia um “bichinho”
me comia por dentro e aproveitei uma hora em que ninguém estava prestando
atenção e entrei com o coração aos pulos.
O homem encolhido na minha cama,tinha um cheiro horrível,um
machucado na cabeça,as mãos inchadas e respirava fazendo barulho. Fiquei ali,parada
olhando e quando ele abriu os olhos eu quase caí para traz. Ele sorriu,e
perguntou meu nome,me chamou para perto,perguntou o que eu estava fazendo.
Respondi . Ele me disse que também gostava de futebol,perguntou quanto estava o
jogo .Comecei a contar à ele a saga da minha frustração e no meio da história
da minha festa cancelada,meu pai me puxou pelos cabelos e com uma bela bronca
me tirou dalí.
Nunca esqueci o rosto daquele homem e a partir daí comecei a
prestar mais atenção no que acontecia a minha volta. Ele era bom e estava tão
machucado,eu queria entender porque.
O Brasil foi Tri, Tv a cores e ao vivo virou obsoleta,a ditatudura militar destruiu o país,mas acabou e eu,continuo não entendendo nada.
O Brasil foi Tri, Tv a cores e ao vivo virou obsoleta,a ditatudura militar destruiu o país,mas acabou e eu,continuo não entendendo nada.
Muitos anos depois,na
volta de um exilado amigo,fui com meu pai ao aeroporto e no meio daquela festa
toda,junto com nosso amigo,um homem me olhou,sorriu e perguntou:
_ E aí,continua gostando de futebol?
Antes que eu pudesse responder,meu pai deu um jeito de me
desviar a atenção e até hoje eu não sei quem era.

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