Esqueçam os tratados sociológicos,as intrincadas teias da
sociedade patriarcal,esqueçam os séculos de opressão à mulher impostos por uma
dinâmica que teme o útero.Aos quinze anos descobri,o machismo vem da mamãe!
Eu era uma adolescente bem típica numas coisas,mas muito
estranha em outras.Não sabia andar em bando,mas aonde chegava logo estava rodeada
de gente,vivia apaixonada pelo professor de matemática,mas não sabia nem fazer
conta de dividir,detestava escola,mas ler era comigo mesmo.
Foi por conta da minha paixão pela leitura que caiu em
minhas mãos um livro chamado “Mr. Goodbar” de Judith Rossner.Fui lendo e me apaixonando
pela personagem,Thereza Dunn.
Aqui cabe
um parêntese para um breve esclarecimento: Não me lembro quando isto
começou,mas desde muito pequena tinha mania de ficar observando as pessoas,como
se vestiam,como falavam,se mexiam ,arrumavam o cabelo. Em seguida inventava
histórias para estas pessoas,me vestia feito elas e passava a viver as
histórias que criava. Por um tempo eu era uma personagem,vinte e quatro horas
por dia encarnada na vida de outrem.
Pois bem,virei Thereza. Theresa Dunn, desde menina teve seus próprios problemas, teve poliomelite, decorrente disso acaba tendo uma escoliose é submetida a uma cirurgia na coluna, o que lhe deixa com uma enorme cicatriz e
faz com que ela ande de forma meio diferente, o que a constrange muito
quando alguém repara e tem um enorme complexo de inferioridade, que se manifesta principalmente quando ela está perto de sua irmã Katherine.
Ao longo da vida, Theresa vai lidando com seus sentimentos, tristezas e carências, demônios que ela exorcisa numa via cruces por bares da cidade.
Ao longo da vida, Theresa vai lidando com seus sentimentos, tristezas e carências, demônios que ela exorcisa numa via cruces por bares da cidade.
O bar não era
exatamente um universo desconhecido para mim,frequentava-o com meu pai que
adorava um boteco e uma roda de samba e observadora como era,sabia como o lugar
funcionava,como pensavam aquelas pessoas e o que eu tinha que fazer para
transitar ali do jeito que queria.
Vestida como Thereza,com um leve mancar e livro debaixo do
braço,escolhi um “Pé Sujo” no Estácio para viver minha esquizofrenia.
Na primeira vez que entrei,o susto de quem frequentava foi
grande. Me mantive firme,meu corpo já pronto,apesar da idade,me garantia a
veracidade da personagem e o talento para doida fazia a performance digna do
Oscar.
Assim foi indo,tinha uma folga,corria para o boteco. Os
olhares curiosos aos poucos foram perdendo e estranheza e puxando assunto aqui
e ali. Eu,como boa “atriz”, estudava a personagem e me cercava de informações
para manter o papo plausível.Reportagens sobre prostitutas,biografias de
cantoras de blues,eram parte do meu material escolar.
Lembra das rodas de samba que ia com meu pai?Grande ajuda
porque não tem bar sem violão e cavaquinho,além disso minhas cantigas de
ninar,também entoadas por meu pai,iam de Carlos Galhardo à Tom Jobim passando
por Maysa,Cartola,Dorival Caymmi e vai por aí,o que foi ótimo para impressionar
e me aproximar de todos ali.
Eu estava feliz feito “pinto no lixo” até minha mãe
descobrir.
Horrorizada com minha audácia,ela esbravejava que eu
estudava em colégio de freiras,aprendia bordado,etiqueta e postura,piano e Frances,não
tinha cabimento eu frequentar botequim. Eu,entre sonsa e realmente
intrigada,perguntava porque e a resposta era que aquilo não era lugar para
moças direitas,que o ambiente era pernicioso e que ninguém ali prestava para
nada.
Eu tentava argumentar que tinha conhecido pessoas ótimas,que
nunca ninguém ali havia me faltado com o respeito,que apenas cantávamos e contávamos
histórias da vida,mas não adiantava.Por fim,cansada de tanta briga, sem nenhuma
justificativa que me fizesse ao menos ponderar a respeito, eu perguntei a ela
porque então um lugar tão nefasto podia ser frequentado por homens,em geral
e,especificamente por meu pai,mas não por mim e num berro que me ecoa até hoje
nos ouvidos ela decretou: “-PORQUE É
LUGAR DE HOMEM E DE PUTA!!!”
Conclusão,o livro que me levou à viagem para o primeiro “Pé
Sujo” sozinha,foi parar no lixo todo picotado e mamãe me ensinou o que era
machismo.
Hoje,muitos botecos depois,tenho um filho homem e com todas
as minhas forças tentei ensinar a ele que homens e mulheres só são
diferentes,mas ,não só podem,como devem transitar pelos mesmos universos porque
a troca é o que conta e olhares diferentes produzem encontros interessantes.
